Sérgio Alcides Pereira do Amaral

Um rastilho de pólvora: assim se espalhou o entusiasmo do público pelo “romance da crise brasileira de nossos dias”, como dizia o texto editorial da contracapa: da leitura desse livro, “ninguém sairá inatingido no mais profundo de sua consciência”. A expedição ao centro geográfico do território também visava ao cerne da consciência pública nacional – e se arriscava assim a encontrar também nesta o imenso formigueiro que Nando e seus companheiros descobriram no outro, fervendo “com um fogo negro-fulvo de cabeças e ferrões”.

"'Quarup': a deseducação do público"Kriterion, ed. especial: 2020, pp. 257-72.

 

Um pouco de Grécia pode ajudar a entender melhor a situação do escritor latino-americano. Mas não me refiro à Grécia da Antiguidade, que foi uma das maiores fascinações de Alfonso Reyes, aquela Grécia de Homero, o poeta imemorial que Borges não cessava de evocar. Falo da Grécia moderna, pós-colonial, bem menos arquetípica. A questão da literatura nacional ali era mil vezes mais complicada do que na América Latina. Evidentemente, ninguém poderia duvidar da existência de uma literatura grega. (...) Mas não é difícil perceber como esse passado, para os gregos modernos, ameaçava tornar-se antes uma opressão do que um esteio.

"Um pouco de Grécia na literatura nacional"Revista Brasileira III, 103: 2020, pp. 91-102.

 

Antes de mais nada, é necessário admitir o fato de que Cláudio Manuel é primeiramente o nome de uma rua, não de um poeta. Há mais moradores nesse endereço, em Belo Horizonte, do que leitores de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). O homenageado se converte em logradouro, debaixo de nossos pés, sob a rodagem dos nossos pneus. Sua existência no tráfego não parece ameaçada: está no mapa, literalmente. O waze nos diz onde fica. Sua realidade literária já é discutível, quase fantástica. (...) A via é pública; a obra, nem tanto. Se não for atravessada, uma rua continua. Mas Cláudio Manuel, se não for lido, existe ainda?

 "Fábula de Cláudio Manuel da Costa"Nova Economia 29: 2020, pp. 1.389-407.

 

O negócio da Musa não tem mais gratuidade; meia entrada para estudantes, se tanto. O acesso não sai barato: o download custa um preço. O cachê da Musa é alto: não é disso que ela se queixa. O problema é a redução de seus talentos a valores. Nem o hálito divino é hoje tão excepcional que não se possa reproduzir em milhares de frascos a serem vendidos online ou não, na terra, por manequins, e no céu, por aeromoças, duty free. Por trás do canto delicioso, ouve-se o ritmo atordoante das asas pretas: uma esquadrilha de trezentas harpias vem recolher os lucros – as arrebatadoras, as abastecedoras contábeis do Inferno.

"Euterpe, atenção e deleite"Nuntius Antiquus 15, 1: 2019, pp. 131-54.

 

A forte reação pública despertada em BH pelo poema “Triste Horizonte” dá o que pensar. Independentemente de qualquer motivação nostálgica, o poeta atacava a ideologia do progresso que era o nervo do desenvolvimentismo oficial do regime militar então instalado — e esse tema marcou a politização e a militância eco-lógica do Drummond tardio. Assim desferido, o poema atingiu em cheio o acanha-mento da opinião pública belo-horizontina, e fez despertar nela um inconformismo que explodiu em protestos e debates — sobretudo entre jovens adultos.

"Belo Horizonte de expectativas: a despedida de Drummond"In: Eliana de Freitas Dutra & Caio C. Boschi (orgs.). Estudos sobre Belo Horizonte & Minas Gerais nos trinta anos do BDMG Cultural. Belo Horizonte: BDMG, 2018, pp. 99-111.

 

Vamos convidar o Minotauro para o nosso colóquio (...). Cada um toma uma parte, uma gota desse gole de cicuta que nos cabe coletivamente. Venha cá, Sócrates: “A vida não-examinada não vale a pena para o ser humano”. Será que não vale mesmo? (...) Sendo ou não “vida examinada” (porque ela pode ser o que quiser), a poesia é sempre “vida a examinar”. Então vamos cumprir nosso dever: questioná-la de vários lados, roê-la um pouco, saboreá-la, cuspir o bagaço, morder o caldo, toda essa escatologia, meter o olho no fundo, trazer à tona o poema, vestir o fantasma dos nossos espantos.

"Vida examinada, vida a examinar. Convite ao colóquio"InterteXto 11, 2: 2018, pp. 3-13.

 

Perder Antonio Candido nos relembra que o ganhamos. Certo: outro “mestre açú” já tinha feito esse jogo de palavras, e foi Carlos Drummond de Andrade, numa primeira pessoa singular: “Ganhei (perdi) meu dia”. Mas a lembrança não deixa de ser oportuna. Também o poeta tinha despertado um elo público semelhante, ao morrer, há trinta anos. Conforme o tamanho do legado, uma espécie de consciência nacional se põe em movimento, rangendo por falta de uso, e verifica a presença de uma obra colossal, enfim concluída, que pode entrar no inventário do patrimônio de todos.

 "O Brasil no meio do caminho: Antonio Candido"Quatro Cinco Um jun. 2017: pp. 12-13.

 

The more oblique regard of Machado and Borges would make us first consider the possibility that European intellectuals also experience the same feeling of not belonging entirely to their countries, or not fitting very well in their surrounding landscapes, or else that intellectual life may be in itself a way of uprooting oneself from one’s origins, everywhere, for everyone. Anyway, both writers were doubtful about the powers of local color to imprint nationality in literature. Both attacked this point, the Brazilian reacting against Romanticism, the Argentine reacting to Romantic developments of the avantgarde.

 "Machado de Assis and Borges on Nationality in Literature"Romanistisches Jahrbuch 65/66: 2015, pp. 324-37.

 

"Muito embora a representação-efeito continue a ter como sede engendradora o sujeito, sua tematização perturbava a concepção de um sujeito unitário”. Daí que esses dois construtos teóricos indefectivelmente costalimianos brotem um do outro e se entrelacem numa espécie de dança que só foi possível porque Costa Lima decidiu aceitar o “desafio ao pensamento” levantado pela mímesis.

"Um livro-limite"In: Luiz Costa Lima. Mímesis: desafio ao pensamento. 2a edição. Florianópolis: UFSC, 2014, pp. 307-11.

 

Se a memória de Drummond não é falha, nem falseia o passado, é possível especular que Augusto dos Anjos tenha desempenhado um papel relevante na educação modernista do autor de Alguma poesia. A “dramaticidade permanente” também caracteriza o melhor da poesia de Drummond, e com frequencia está igualmente associada ao aproveitamento de elementos que o gosto médio perceberia como grotescos. 

"Um gosto de Augusto em Drummond"In: M. do S. S. de Aragão, N. M. Santos & A. I. S. L. Andrade (orgs.). Augusto dos Anjos. A heterogeneidade do eu singular. João Pessoa: Mídia, 2012, pp. 395-406.

 

Não se pode compreender a Formação sem o enfoque momentâneo, sem contrapor seu plano à expectativa de um novo “momento decisivo” que revertesse uma tendência forte à desorganização dos esforços civilizadores acumulados, com o seu consequente desperdício. Se a primeira palavra do título tem sido bem interrogada por seus melhores intérpretes, permanece entre parênteses a expressão final. Mas é ela que melhor esclarece o empenho específico do livro.

"O momentâneo na 'Formação'"O Eixo e a Roda 20, 1: 2011, pp. 141-54.

 

O ângulo decididamente letrado assumido por Gândavo sobressai na observação sobre a falta de fé, lei e rei dos ameríndios, na falta de F, L e R: os sons são logo assimilados às letras, de maneira que um problema fonético se torna alfabético, “literal”. A princípio, soa estranho hoje que um ortografista sempre apontado como pragmático e objetivo proponha um laço tão estreito entre as letras e os costumes, de inequívoco teor providencial (se Deus espalhou signos pelo mundo, também pode ter espalhado a falta deles). O estranhamento contribui para a impressão de indiferença entre os dois livros publicados em vida pelo autor.

"F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização"Escritos 3, Fundação Casa de Rui Barbosa: 2009, pp. 39-53.

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